Em 1976, então como economista do Instituto de Pesquisas Econômicas do Ministério do Planejamento (IPEA), editei um livro, que foi publicado e muito bem vendido na época, e que sintetizava um grande debate sobre o planejamento macroeconômico no Brasil, sob o título “A Controvérsia do Planejamento na Economia Brasileira”, recentemente reeditado (2010) pelo próprio IPEA e pelo Instituto Roberto Simonsen da Federação Industrial do Estado de São Paulo (FIESP). Abordava um debate histórico famoso envolvendo duas grandes personalidades pública dos anos 40 do século passado: Roberto Simonsen, intelectual e empresário paulista de grande projeção, e Eugênio Gudin, engenheiro e economista brilhante, considerado o “pai do pensamento econômico brasileiro”.
O debate foi longo, acalorado, e rendeu diversas publicações de ambas as partes, que são transcritas no livro. Simonsen era um fervoroso adepto do planejamento do nosso desenvolvimento, e até mesmo favorável a alguma interferência do Estado no domínio econômico, embora defensor da iniciativa privada, enquanto Gudin alinhava-se como um liberal clássico, a favor do capitalismo e do livre funcionamento das forças de mercado.
Minha intenção na época, ao editar o livro para o IPEA, foi reviver as origens de um grande debate que ainda persistia nos anos 70: qual o sentido mais adequado para o planejamento econômico de um país como o Brasil, com tantas diversidades sociais, regionais e setoriais, e até mesmo dificuldades de informações que pudessem indicar com segurança os rumos mais eficientes para o desenvolvimento econômico.
Já na época era reconhecido o fracasso do planejamento central nos países socialistas, que afinal muito contribuiu para o fim do comunismo, e por aqui, insistiam alguns adeptos do liberalismo econômico, o governo estava a repetir o equívoco.
Embora sempre fosse afirmado que o nosso planejamento econômico e social tinha sentido mais indicativo de rumos a seguir do que impositivo (como nos países socialistas), e que como tal era compatível com o sistema econômico de mercado, muitos dos seus críticos insistiam na inconsistência básica entre liberdade de produzir e consumir com metas planificadas por burocratas estatais. Mas afinal prevaleceu a tese de que temos muito a ganhar com alguma planificação das ações públicas, e que o procedimento é perfeitamente compatível com o sistema econômico baseado na livre iniciativa.
Na verdade, o sistema de planejamento econômico foi mesmo adotado pelo governo de forma institucionalizada, desde meados dos anos 60, por meio de uma lei orgânica e de procedimentos que creio não foi revogada até hoje, embora nem se fale mais no assunto. Todavia, ainda temos o Ministério do Planejamento (ou o que sobrou dele), mas que atualmente cuida apenas dos orçamentos do Estado, assim como o órgão que elaborava os extintos Planos de Desenvolvimento Nacionais (os famosos PNDs), o IPEA, mas que infelizmente foi totalmente desfigurado de suas funções originais e vinculado a uma misteriosa, incompreensível, Secretaria de Assuntos Estratégicos. Remanesceram ainda alguns órgãos setoriais de planejamento, embora igualmente afastados de suas funções originais.
Sobre o IPEA, órgão público a que servi como economista durante 27 anos, muito poderia ser contado. Na verdade, mais que elaborador dos Planos, o IPEA era um poderoso “think tank” do governo na elaboração de pesquisas, políticas públicas e estratégias de desenvolvimento. Seu corpo técnico era respeitado no Brasil e no exterior, e suas publicações fizeram história. Lá sempre se defendeu a visão de que o planejamento tinha duas vertentes básicas: era impositivo para as ações do governo, especialmente no cumprimento dos orçamentos, nos programas de investimento, e nas grandes decisões estratégicas. Por outro lado, era apenas indicativo de rumos possíveis ou desejados para o setor privado, sem interferir nas decisões das empresas. Na verdade, na prática era uma espécie de “bússula” a nortear os rumos setoriais e reginais best online casino da economia, o que afinal acabava por facilitar a tomada de decisões empresariais que pressupunham uma visão de mais longo prazo para a economia.
Todavia, a grande crise da dívida externa nos anos 80, seguida de um processo inflacionário que desorganizou a economia e que afinal ajudou a derrubar o regime militar, fez com que o sistema perdesse seus fundamentos e fosse esquecido. O último Plano Nacional de Desenvolvimento foi escrito em 1980 e pouco tempo depois abandonado.
O IPEA, mercê de sua equipe técnica, ainda resistiu bravamente durante longo tempo. Deixou de escrever os tais Planos, evidentemente, mas produziu muita pesquisa, estudos macroeconômicos, análises setorias, estratégias regionais, programas sociais e muitas políticas públicas bem sucedidas, pelo menos até meados da primeira década deste século. Todavia, com a retirada de seus líderes técnicos que aos poucos foram se aposentando e se afastando do órgão, parece que não lhe foi possível persistir, talvez até porque tenha lhe faltado o reconhecimento público de sua importância. Assim, aos poucos foi perdendo a antiga funcionalidade, e hoje parece estar sempre à cata de temas que possam render trabalhos de pesquisas para ocupar seus técnicos.
Foi o que ocorreu em fins de março de 2014 com a publicação com erro de uma pesquisa sobre a visão da sociedade brasileira em relação ao crime de estupro de mulheres (um tema que, há alguns anos atrás, jamais seria siquer cogitado de ser abordado por um órgão como o IPEA, vocacionado a pesquisas econômicas!). O reconhecimento foi de um erro grosseiro, primário, mas que inexplicavelmente custou a ser detectado, que causou muita confusão na opinião pública, e desencadeou uma quase comoção nacional em relação ao tema. Após o reconhecimento público do erro, o diretor de pesquisas da área social pediu afastamento do cargo, mas o estrago já estava feito. Estrago principalmente na imagem da Instituição, que não merecia isto! Triste exemplo paradigmático da perda de funcionalidadea das instituições públicas brasileiras.
E quanto ao já há muito falecido sistema de planejamento brasileiro? Alguém aqui nesse país sabe dizer com precisão de onde viemos, onde estamos exatamente e para onde queremos ir? Essas são as três pergunta elementares do processo de planejamento estratégico elaborado por qualquer empresa minimamente organizada. São questões que quaisquer governos de países razoavelmente organizados procuram esclarecer para a sociedade, mas que atualmente, entre nós, são simplesmente ignoradas. É pena, mas parece que perdemos nossa fé no ente público e passamos a viver das circunstâncias. Por isso vamos mal, aparentemente sem rumo.
As definições estratégicas são fundamentais para os setores de infra-estrutura, como transporte e energia, que necessitam de longos prazos de maturação para os investimentos fixos. Nesse aspecto, a crise atual do sistema energético é um exemplo eloquente da falta de planejamento e da ausência total de visão de longo prazo. A ausência de visão regional e setorial também dificulta a montagem de sistemas logísticos em apoio aos setores produtivos, como o de “agronegócios” e as indústrias de insumos básicos.
Todavia, creio ser possível recuperar essa função do Estado, para o bem de todos. E nem seria preciso criar novas organizações, porque, ao menos institucionalmente, elas continuam existindo. As competências técnicas podem ser recuperadas, porque temos profissionais de boa qualidade no próprio setor público e em diversas empresas de consultoria econômica, de muito boa qualidade, que poderiam ser facilmente mobilizadas por meio de concorrências públicas.
O sentido deste “novo planejamento econômico e social” seria, no entanto, diferente do que existiu até o início dos anos 80. Teria agora um corte mais estratégico, ao discutir os rumos possíveis para a sociedade e as opções mais desejáveis, indicando os meios para atingí-las. Sabemos hoje que os sistemas econômicos não podem ficar ao sabor das circunstâncias, especialmente em países em desenvolvimento. Necessitam de políticas públicas para se orientar em sentido construtivo, mas as políticas públicas precisam partir de arcabouços “macro” para se inserir de forma coerente dentro dos grandes objetivos, e serem interdependentes e complementares. Essa é uma grande lição que nos tem sido ensinada pelos países asiáticos e que já vem sendo aplicada por alguns países na nossa Amércia Latina, como o Perú, a Colômbia, o México e o Chile, e que já colhem seus frutos.
Como qualquer planejamento, partiria de dagnósticos que mapeariam nossos pontos fortes e fracos, carências e necessidades mais prementes, ameaças e oportunidades. E terminaria com uma sequência de programas e projetos capazes de mobilizar as forças da sociedade em direção aos objetivos desejados. De forma semelhante como se procede no planejamento estratégico das grandes empresas que são bem sucedidas.
Creio sinceramente que um grande esforço nesse sentido poderia em muito contribuir para o resgate de nossa auto-estima e determinação, e nos conduzir a um destino mais promissor. Mas é preciso, antes de tudo, vontade política, e um mínimo de visão de Estado e competência nos altos escalões da Republica.
2 respostas em “O Planejamento do Brasil”
Prezado Von,
Além das três questões elementares do planejamento estratégico (De Onde Viemos? Onde Estamos? e Para Onde Queremos Ir?), apontadas no seu texto abaixo, eu agregaria uma quarta questão: Como Vamos Ir? Esta última nos remonta a velhos dilemas, tais como estatismo vs liberalismo. planejamento de prancheta ostensivo vs planejamento
indicativo, entre outros temas.
“Alguém aqui nesse país sabe dizer com precisão de onde viemos, onde estamos exatamente e para onde queremos ir? Essas são as três pergunta elementares do processo de planejamento estratégico elaborado por qualquer empresa minimamente organizada”
Concordo com a importancia da pergunta : como iremos? Por isso deixei claro que o planejamento proposto não é o dos anos 70, mas sim indicativo para o setor primário, e impositivo para os investimentos públicos necessários, mas também ai podemos contar com parecerias público-privadas e algumas privatizações. O mais importante, acima de tudo, é mais uma vez lembrar a sábias palavras de Deng Xiao Ping, sobre o planejamento estratégico chinês que transformou a China na segunda potência econômica mundial: ” A mim não importa a cor dos gatos, contanto que caçem ratos com eficácia”.